Eu sou por Natureza feito para meu próprio bem; não para meu próprio mal.

Dos Ensinamentos Áureos de Epicteto.


quarta-feira, 26 de novembro de 2014

JÁ NO ROXO ORIENTE BRANQUEANDO — Correia Garção

FORMAS POÉTICAS 07 — CANTATA
A cantata surgiu na Itália no século 18 e pertence ao gênero lírico. Tem duas partes. A primeira, em decassílabos alternados com hexassílabos, chama-se recitativo. A segunda, em tetrassílabos, chama-se ária. A que se segue foi escrita por Correia Garção e acompanha o sofrimento de Dido, traída e abandonada por Eneias.

Já no roxo Oriente branqueando
As prenhes velas da Troiana frota
Entre as vagas azuis do mar dourado
Sobre as asas dos Ventos se escondiam.
A misérrima Dido
Pelos Paços reais vaga ululando,
Cos turvos olhos inda em vão procura
O fugitivo Eneias.
Só ermas ruas, só desertas praças
A recente Cartago lhe apresenta:
Com medonho fragor na praia nua
Fremem de noite as solitárias ondas;
E nas douradas grimpas
Das cúpulas soberbas
Piam noturnas agoureiras aves.
Do marmóreo sepulcro
Atônita imagina
Que mil vezes ouviu as frias cinzas
Do defunto Siqueu com débeis vozes,
suspirando chamar: Elisa , Elisa!
D'Orco aos tremendos Numens
Sacrifícios prepara;
Mas viu esmorecida
Em torno dos turícremos altares
Negra escuma ferver nas ricas taças,
E o derramado vinho
Em pélagos de sangue converter-se.
Frenética delira;
Pálido o rosto lindo,
A madeixa sutil desentrançada;
Já com trêmulo pé entra sem tino
No ditoso aposento,
Onde do infido amante
Ouviu enternecida
Magoados suspiros, brandas queixas.
Ali as cruéis Parcas lhe mostraram
As Ilíacas roupas, que pendentes
Do tálamo dourado descobriam
O lustroso pavês, a Teucra espada.
Com a convulsa mão súbito arranca
A lâmina fulgente da bainha,
E sobre o duro ferro penetrante
Arroja o tenro, cristalino peito:
E em borbotões de espuma murmurando
O quente sangue da ferida salta:
De roxas espadanas rociadas
Tremem da sala as dóricas colunas.
Três vezes tenta erguer-se,
Três vezes desmaia sobre o leito,
O corpo revolvendo, ao Céu levanta
Os macerados olhos.
Depois, atenta na lustrosa malha
Do prófugo Dardânio,
Estas últimas vozes repetia,
E os lastimosos, lúgubres acentos
Pelas áureas abóbadas voando,
Longo tempo depois gemer se ouviram.

Doces despojos
Tão bem logrados
Dos olhos meus,
Enquanto os fados,
Enquanto Deus
O consentiam.
Da triste Dido
A alma aceitai,
Destes cuidados
Me libertai.
Dido infelice
Assaz viveu;
D'alta Cartago
O muro ergueu:
Agora nua,
Já, de Caronte,
A sombra sua
Na barca feia,
De Flegetonte,
A negra veia
Sulcando vai.

Siqueu = marido de Dido (Elisa), assassinado pelo irmão dela; apareceu a Dido em sonho
Orco = Região dos mortos
Nume = Divindade mitológica
turícremo = Em que se queima incenso
pélago = abismo
infido = infiel
Ilíaca = de Tróia
Teucro = o mesmo que troiano
Dardânio = troiano
Caronte = barqueiro do inferno mitológico
Flegetonte = rio de fogo no inferno mitológico

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