Eu sou por Natureza feito para meu próprio bem; não para meu próprio mal.

Dos Ensinamentos Áureos de Epicteto.


quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

DE COLOMBINA O INFANTIL BORZEGUIM — Manuel Bandeira

FORMAS POÉTICAS 34 — RONDÓ [3]
O rondó simples tem três estrofes – duas quadras e uma sextilha – com a metade inicial do primeiro verso do poema a servir de refrão, em seguida à segunda quadra e à sextilha. Duas rimas – cruzadas nas quadras, com uma terceira rima na sextilha. O exemplo vem ainda de Manuel Bandeira.

RONDÓ DE COLOMBINA

De Colombina o infantil borzeguim
Pierrot aperta a chorar de saudade.
O sonho passou. Traz magoado o rim,
Magoada a cabeça exposta à umidade.

Lavou o orvalho o alvaiade e o carmim.
A alva desponta. Dói-lhe a claridade
Nos olhos tristes. Que é dela?... Arlequim
Levou-a! e dobra o desejo à maldade
De Colombina.

O seu desencanto não tem um fim.
Pobre Pierrot! Não lhe queiras assim.
Que são teus amores?... — Ingenuidade
E o gosto de buscar a própria dor.
Ela é de dois?... Pois aceita a metade!
Que essa metade é talvez todo o amor
De Colombina...

Manuel Bandeira, in Carnaval.

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

OS CAVALINHOS CORRENDO, E NÓS, CAVALÕES, COMENDO — Manuel Bandeira

FORMAS POÉTICAS 34 — RONDÓ [2]
O rondó dobrado é composto por seis quadras – ou cinco, com a última unida a um terceto. As rimas são duas. O refrão é constituído pelos dois primeiros versos, que se repetem no início de todas as quadras. O exemplo clássico vem de Manuel Bandeira.

RONDÓ DOS CAVALINHOS

Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
Tua beleza, Esmeralda,
Acabou me enlouquecendo.

Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
O sol tão claro lá fora
E em minh'alma — anoitecendo!

Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
Alfonso Reyes partindo,
E tanta gente ficando...

Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
A Itália falando grosso,
A Europa se avacalhando...

Os cavalinhos correndo,
E nós, cavalões, comendo...
O Brasil politicando,
Nossa! A poesia morrendo...
O sol tão claro lá fora,
O sol tão claro, Esmeralda,
E em minh'alma — anoitecendo!

Manuel Bandeira, in Estrela da Manhã.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

DE AMOR E CIÚMES DESATINO — Goulart de Andrade

FORMAS POÉTICAS 34 — RONDÓ [1]
O rondó é um poema de forma fixa, também de origem francesa.
Há rondós de vários modelos.
O do tipo francês se estrutura em três estrofes – duas quintilhas separadas por um terceto. Ao fim do terceto e da segunda quintilha vem um refrão, formado pela primeira metade do primeiro verso. A estrutura métrica é variada, com apenas duas rimas. O exemplo seguinte, em octossílabos, foi composto ainda por Goulart de Andrade.

XII
(RONDÓ)


De amor e ciúmes desatino,
Porque te amar é meu destino,
— Causa do gozo e do sofrer! —
Se vivo é para te querer,
Mulher, fulgor, perfume ou hino!

O meu desejo, astro divino,
Cerca-te o vulto airoso e fino,
Como atmosfera, a te envolver,
De amor!

Ilha florida, eu te imagino,
E julgo o ciúme, agro e mofino,
Que me transtorna todo o ser,
Um bravo mar sempre a gemer,
A uivar, num ímpeto tigrino
De amor!...

Goulart de Andrade, Poesias 1900-1905.

domingo, 28 de dezembro de 2014

MEU CORAÇÃO, MINHA ALTIVEZ, PONHO A TEUS PÉS — Goulart de Andrade

FORMAS POÉTICAS 33 - RONDEL
O rondel – poema de forma fixa de origem francesa – se estrutura em duas quadras e uma quintilha, com apenas duas rimas, em que os dois primeiros versos da primeira quadra são o estribilho, pois se repetem nos dois versos finais da segunda quadra, sendo que o primeiro verso do poema será também o último.
O poema seguinte, sem título, vem no livro de Goulart de Andrade, Poesias 1900-1905, publicado em 1907.

XIII
(RONDEL)


Meu coração, minha altivez,
Ponho a teus pés, musa serena,
— Sonho de amor em noite plena
De redolência e languidez!

Tens para mim tanta algidez...
Pobre, que em troca desta pena,
Meu coração, minha altivez,
Ponho a teus pés, musa serena.

Fraco, a vontade se me esfez
Nesta volúpia que envenena...
Queres-me ver de rastro? Ordena,
Que eu deporei sob os teus pés
Meu coração, minha altivez...

sábado, 27 de dezembro de 2014

TENHO DUAS ROSAS NA FACE, NENHUMA NO CORAÇÃO — Murilo Mendes

FORMAS POÉTICAS 32 — POEMA-PIADA
O poema-piada é um poema curto, de espírito trocista, que – no começo do movimento moderno – visava ridicularizar o formalismo dos poetas parnasianos e o sentimentalismo romântico.
Basta um exemplo:

Tenho duas rosas na face,
nenhuma no coração;
do lado esquerdo da face
também costuma dar alface,
do lado direito não.

Murilo Mendes, Amostra da Poesia Local.

Ou não basta. Segue Filosofia, de Ascenso Ferreira:

Hora de comer — comer!
Hora de dormir — dormir!
Hora de vadiar — vadiar!
Hora de trabalhar?
— Pernas para o ar, que ninguém é de ferro!

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

ESTRELAS SINGELAS, LUZEIROS FAGUEIROS — Fagundes Varella

Formas poéticas 31 — Poema Figurativo
Não se trata de poema com sentido figurado, mas de um poema visual, cujos versos são dispostos de modo a reproduzir a forma do objeto de que se fala. Já era conhecido dos antigos gregos e romanos. Há múltiplos exemplos, mas ficarei com o poema de Fagundes Varella que abre seus Cantos Religiosos.

 
Estrelas
Singelas,
Luzeiros
Fagueiros,
Esplêndidos orbes, que o mundo aclarais!
Desertos e mares, — florestas vivazes!
Montanhas audazes que o céu topetais!
Abismos
Profundos!
Cavernas
Eternas!
Extensos,
Imensos
Espaços
Azuis!
Altares e tronos,
Humildes e sábios, soberbos e grandes!
Dobrai-vos ao vulto sublime da cruz!
Só ela nos mostra da glória o caminho,
Só ela nos fala das leis de — Jesus!



domingo, 21 de dezembro de 2014

EU CANTO OS DOUS PASTORES — Cláudio Manuel da Costa

FORMAS POÉTICAS 30 — POEMA BUCÓLICO [2]
Outra variante do poema bucólico é a écloga ou égloga. É um tipo de poema em que pastores e suas amadas dialogam. Vão algumas estrofes da Écloga 1 do árcade mineiro.

ÉCLOGA 1
OS MAIORAIS DO TEJO

Montano, Corebo, Lise e Laura

Eu canto os dous Pastores
Que o Tejo cristalino
Na bela margem viu: canto o divino
Assunto dos amores,
Que de inveja, e de agrado
O céu, a terra, o mar tem namorado.

Também das Ninfas belas,
Que Amor viu abrasadas,
Os números entoo: se entre aquelas
Cadências delicadas,
Rude o som de meu canto
Se faz digno, Senhor, de obséquio tanto.

..............................................................

Em uma tarde, quando
Os músicos Pastores
Ao som da acorde flauta recitando
Estavam seus amores,
Nas vozes, que afinavam,
Deste modo a cantar se preparavam:

COREBO. Já que estamos, Montano, neste monte,
Sem outra companhia, enquanto o gado,
Buscando as doces águas dessa fonte,
Vem concorrendo dum, e doutro lado,
Aqui deste salgueiro,
Sentados junto à sombra, eu te requeiro,
Torna-me a repetir aquela história,
Que toda esta minha alma encheu de glória.

MONTANO. Dos nossos Maiorais a grande festa,
Corebo, quem a viu jamais se farta
De a contar: mas enquanto a fresca sesta
A nós se chega, enquanto o Sol se aparta,
Tomando a flauta doce,
O caso contarei; mas ah! se fosse
Minha voz tão suave, e tão divina,
Como aquela que pede ação tão digna!

..............................................................

sábado, 20 de dezembro de 2014

ROUBANDO AMOR UM DOCE FAVO UM DIA — Teócrito

FORMAS POÉTICAS 30 — POEMA BUCÓLICO [1]
Os poemas bucólicos referem-se à vida e costumes dos antigos pastores gregos, que se supunha serem simples, graciosos e inocentes.
Uma de suas variantes é o idílio ou pequena ode. Foi muito empregada pelos poetas arcádicos. O exemplo que se segue é de Teócrito.

IDÍLIO 19
O Ladrão de Mel

Roubando Amor um doce favo um dia,
Uma abelha cruel no dedo o pica:
Ele zangado fica,
Assopra os dedos, pula, se arrelia,
Bate com os pés por dor atroz levado,
E à mãe queixar-se vai muito admirado
Que um tão mesquinho inseto produzisse
Picadas tão doridas:
Afrodite sorri-se:
— De que te admiras? diz-lhe em tom ameno,
Pois não és como a abelha? és tão pequeno
E quanto sóis fazer fundas feridas!

Tradução de Lucindo Filho.


sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

CADÊ O TOUCINHO QUE TAVA AQUI — Folclore

FORMAS POÉTICAS 29 — PARLENDA
Parlenda são versos que se recitam nas brincadeiras infantis. Por terem conteúdo folclórico, apresentam muitas variantes.
Um exemplo:

— Cadê o toucinho
que tava aqui?
— Gato comeu.
— Cadê o gato?
— Fugiu pro mato.
— Cadê o mato?
— Fogo queimou.
— Cadê o fogo?
— Água apagou.
— Cadê a água?
— O boi bebeu.
— Cadê o boi?
— Tá amassando trigo.
— Cadê o trigo.
— Galinha espalhou.
— Cadê a galinha?
— Tá botando ovo.
— Cadê o ovo?
— Frade comeu.
— Cadê o frade?
— Tá dizendo missa.
— Cadê a missa?
— Já acabou.
— E você não me chamou?

Outro:

Hoje é domingo,
pede cachimbo;
galo monteiro
pisou na areia,
a areia é fina
que deu no sino,
o sino é de prata
que deu na barata,
a barata é de ouro
que deu no besouro,
o besouro é valente
que deu no tenente,
o tenente é mofino
que deu no menino.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

QUANDO PASSASTE, AO DECLINAR DO DIA — Olavo Bilac

FORMAS POÉTICAS 28 — PANTUM
Pantum é um tipo de poema de forma fixa, em quadras, com rimas entrecruzadas, com repetição de versos, segundo o esquema: o 2° e o 4° versos de cada estrofe repetem-se no 1° e no 3° da estrofe seguinte. O primeiro verso do poema é também o verso final. O exemplo clássico vem de Olavo Bilac.

PANTUM

Quando passaste, ao declinar do dia,
Soava na altura indefinido arpejo:
Pálido, o sol do céu se despedia,
Enviando à terra o derradeiro beijo.

Soava na altura indefinido arpejo...
Cantava perto um pássaro, em segredo;
E, enviando à terra o derradeiro beijo,
Esbatia-se a luz pelo arvoredo.

Cantava perto um pássaro em segredo;
Cortavam fitas de ouro o firmamento...
Esbatia-se a luz pelo arvoredo:
Caíra a tarde; sossegara o vento.

Cortavam fitas de ouro o firmamento...
Quedava imoto o coqueiral tranquilo...
Caíra a tarde. Sossegara o vento.
Que mágoa derramada em tudo aquilo!

Quedava imoto o coqueiral tranquilo...
Pisando a areia, que a teus pés falava,
(Que mágoa derramada em tudo aquilo!)
Vi lá embaixo o teu vulto que passava.

Pisando a areia, que a teus pés falava,
Entre as ramadas floridas seguiste.
Vi lá embaixo o teu vulto que passava...
Tão distraída! - nem sequer me viste!

Entre as ramadas floridas seguiste,
E eu tinha a vista de teu vulto cheia.
Tão distraída! – nem sequer me viste!
E eu contava os teus passos sobre a areia.

Eu tinha a vista de teu vulto cheia.
E, quando te sumiste ao fim da estrada,
Eu contava os teus passos sobre a areia:
Vinha a noite a descer, muda e pausada...

E, quando te sumiste ao fim da estrada,
Olhou-me do alto uma pequena estrela.
Vinha a noite, a descer, muda e pausada,
E outras estrelas se acendiam nela.

Olhou-me do alto uma pequena estrela,
Abrindo as áureas pálpebras luzentes:
E outras estrelas se acendiam nela,
Como pequenas lâmpadas trementes.

Abrindo as áureas pálpebras luzentes,
Clarearam a extensão dos largos campos;
Como pequenas lâmpadas trementes
Fosforeavam na relva os pirilampos.

Clarearam a extensão dos largos campos...
Vinha, entre nuvens, o luar nascendo...
Fosforeavam na relva os pirilampos...
E eu inda estava a tua imagem vendo.

Vinha, entre nuvens, o luar nascendo:
A terra toda em derredor dormia...
E eu inda estava a tua imagem vendo,
Quando passaste ao declinar do dia!

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

UM DIA EM QUE NA TERRA A SÓS VAGAVA — Castro Alves

FORMAS POÉTICAS 26 — OITAVA
Oitava é a estrofe de oito versos, que pode ser um poema por conta própria ou constituir o bloco construtivo de poemas maiores. Os Lusíadas de Camões é um poema inteiramente construído com oitavas.
Há vários tipos de oitava: oitava rima, oitava real ou oitava heroica [camoniana]; a oitava siciliana, com esquema de rimas AB AB AB AB; oitava romântica, em que o quarto e o último versos apresentam rimas agudas, sem regras para os outros seis versos.
A oitava camoniana é formada por decassílabos, seguindo o esquema rímico fixo AB AB AB CC, como se pode ver nas estâncias seguintes, do início do episódio de Inês Pereira.

Tu só, tu, puro Amor, com força crua,
Que os corações humanos tanto obriga,
Deste causa à molesta morte sua,
Como se fora pérfida inimiga.
Se dizem, fero Amor, que a sede tua
Nem com lágrimas tristes se mitiga,
É porque queres, áspero e tirano,
Tuas aras banhar em sangue humano.

Estavas, linda Inês, posta em sossego,
De teus anos colhendo doce fruto,
Naquele engano da alma, ledo e cego,
Que a fortuna não deixa durar muito,
Nos saudosos campos do Mondego,
De teus fermosos olhos nunca enxuto,
Aos montes ensinando e às ervinhas
O nome que no peito escrito tinhas.

Do teu Príncipe ali te respondiam
As lembranças que na alma lhe moravam,
Que sempre ante seus olhos te traziam,
Quando dos teus fermosos se apartavam:
De noite em doces sonhos, que mentiam,
De dia em pensamentos, que voavam.
E quanto enfim cuidava, e quanto via,
Eram tudo memórias de alegria.

Para exemplo da oitava romântica, segue o O Voo do Gênio, de Castro Alves.

O VOO DO GÊNIO

À Atriz Eugênia Câmara

Um dia em que na terra a sós vagava
Pela estrada sombria da existência,
Sem rosas—nos vergéis da adolescência,
Sem luz d'estrela—pelo céu do amor;
Senti as asas de um arcanjo errante
Roçar-me brandamente pela fronte,
Como o cisne, que adeja sobre a fonte,
As vezes toca a solitária flor.

E disse então: "Quem és, pálido arcanjo!
Tu, que o poeta vens erguer do pego?
Eras acaso tu, que Milton cego
Ouvia em sua noite erma de sol?
Quem és tu? Quem és tu?"—"Eu sou o gênio",
Disse-me o anjo "vem seguir-me o passo,
Quero contigo me arrojar no espaço,
Onde tenho por c'roas o arrebol".

"Onde me levas, pois?..."—"Longe te levo
Ao país do ideal, terra das flores,
Onde a brisa do céu tem mais amores
E a fantasia—lagos mais azuis..."
E fui... e fui... ergui-me no infinito,
Lá onde o voo d'águia não se eleva...
Abaixo—via a terra—abismo em treva!
Acima—o firmamento— abismo em luz!

"Arcanjo! arcanjo! que ridente sonho!"
— "Não, poeta, é o vedado paraíso,
Onde os lírios mimosos do sorriso
Eu abro em todo o seio, que chorou,
Onde a loura comédia canta alegre,
Onde eu tenho o condão de um gênio infindo,
Que a sombra de Molière vem sorrindo
Beijar na fronte, que o Senhor beijou..."

"Onde me levas mais, anjo divino?"
— "Vem ouvir, sobre as harpas inspiradas,
O canto das esferas namoradas,
Quando eu encho de amor o azul dos céus.
Quero levar-te das paixões nos mares.
Quero levar-te a dédalos profundos,
Onde refervem sóis... e céus... e mundos...
Mais sóis... mais mundos, e onde tudo é meu...

"Mulher! mulher! Aqui tudo é volúpia:
A brisa morna, a sombra do arvoredo,
A linfa clara, que murmura a medo,
A luz que abraça a flor e o céu ao mar.
Ó princesa, a razão já se me perde,
És a sereia da encantada Sila.
Anjo, que transformaste-te em Dalila,
Sansão de novo te quisera amar!

"Porém não paras neste vôo errante!
A que outros mundos elevar-me tentas?
Já não sinto o soprar de auras sedentas,
Nem bebo a taça de um fogoso amor.
Sinto que rolo em báratros profundos...
Já não tens asas, águia da Tessália,
Maldições sobre ti... tu és Onfália,
Ninguém te ergue das trevas e do horror.

"Porém silêncio! No maldito abismo,
Onde caí contigo criminosa,
Canta uma voz, sentida e maviosa,
Que arrependida sobe a Jeová!
Perdão! Perdão! Senhor, p'ra quem soluça,
Talvez seja algum anjo peregrino…
Mas não! inda eras tu, gênio divino,
Também sabes chorar, como Eloá?

"Não mais, ó serafim! suspende as asas!
Que, através das estrelas arrastado,
Meu ser arqueja louco, deslumbrado.
Sobre as constelações e os céus azuis.
Arcanjo! Arcanjo! basta... já contigo
Mergulhei das paixões nas vagas cérulas...
Mas nos meus dedos — já não cabem —
Mas na minh'alma — já não cabe — luz!

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

A MELISSO, TEBANO — Píndaro

Formas Poéticas 26 - Ode [2]
Não apenas a temática determina a forma das odes anacreônticas e pindáricas. Elas apresentam uma estrutura métrica própria, em que as sílabas se alternam — ora longas, ora breves. Mas, por enquanto, não pretendo entrar nessa questão da versificação greco-latina. Assim, considerando apenas os temas abordados, as odes anacreônticas são celebrações dos prazeres da vida breve, e as odes pindáricas são hinos triunfais, associados aos antigos jogos olímpicos, que tinham um papel cívico, religioso e moral. A seguinte ode de Píndaro foi composta por ocasião de um dos Jogos Ístmicos.

A MELISSO, TEBANO
Vencedor da corrida de cavalos

Se alguma vez houve um mortal digno de ouvir a celebração de seu nome por seus concidadãos, foi esse que, coberto pelos dons da fortuna e da vitória, soube preservar seu coração do orgulho, filho insolente da Saciedade. Ó Júpiter! é de ti que os homens recebem as grandes virtudes: mas a prosperidade, cujos fundamentos se apoiam sobre uma sábia providência, só pode crescer e perdurar, enquanto aquela que decorre da perversidade do coração tem apenas a radiância de uma flor passageira.

Quanto ao atleta corajoso, nossos hinos são a mais digna recompensa de suas belas ações, e o poeta, ajudado pelas Graças, se deleita por imortalizá-lo em seus cantos. Assim, duas vitórias que a fortuna concedeu a Melisso1 levaram à plenitude sua alegria: vencedor na corrida de cavalos, ele acaba de ser coroado nos vales do Istmo2, e há pouco ouviu proclamar o nome de Tebas, sua pátria, não longe da sombria floresta onde habitava no passado o leão tão temível.

Não, Melisso não degenerou da virtude de seus ancestrais. Vós todos sabeis, Tebanos, quanta glória adquiriu no passado seu ancestral Cleônimo na corrida de carros; a que nível de honra e de prosperidade chegaram por seus trabalhos e suas vitórias os Labdacidas3, seus antepassados maternos! Mas o Tempo que, em seu curso, arrasta os dias, traz estranhas mudanças: ele eleva um, abaixa outro; só os filhos dos deuses estão ao abrigo de seus golpes.


1 Istmo de Corinto, que ligava a Grécia continental e o Peloponeso.

2 Melisso descendia de Édipo por parte de sua mãe.

3 Os Labdácidas descendiam de Lábdaco, pai de Laio, por sua vez pai de Édipo.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

A ROSA É A HONRA E O ENCANTO DAS FLORES — Anacreonte

FORMAS POÉTICAS 26 — ODE [1]
Dada a complexidade dessa forma, que mudou muito ao longo dos séculos, vou começar pela ode anacreôntica, também chamada ode amorosa ou pastoril. Seus temas são espirituosos e o tratamento é ligeiro, mesmo quando a presença da morte se faz sentir. O exemplo vem do próprio Anacreonte, traduzido (de passagem) da versão francesa de Leconte de Lisle.

ODE 5
Sobre a rosa

Mesclemos a Dioniso a rosa de Eros, e, a cabeça cingida de belas folhas de rosas, bebamos, rindo docemente.
A rosa é a honra e o encanto das flores; a rosa é o desejo e o desvelo da primavera; a rosa é a volúpia dos deuses!
O filho de Vênus se coroa de corolas de rosas, quando ele se mistura com o coro das Graças.
Coroai-me então, ó Dioniso, a fim de que, os cabelos ornados de rosas, eu cante nos templos, e que eu dirija as danças, acompanhado por uma bela jovem!

Na mesma temática, há o poema de Ricardo Reis, heterônimo de Fernando Pessoa:

Coroai-me de rosas,
Coroai-me em verdade,
De rosas —
Rosas que se apagam
Em fronte a apagar-se
Tão cedo!
Coroai-me de rosas
E de folhas breves.
E basta.

E, para encerrar com brilho, a 1ª Ode Anacreôntica do extraordinário brasileiro e poeta, Natividade Saldanha, O Galo de Campina.

Campino galo
De garbo cheio,
No prado voa
De amar contente;
orna-lhe a frente
Vermelha c'roa.

Ave tão bela
Não viu ninguém.

Colar purpúreo
Lhe adorna o peito;
Quando ele entoa
Doces amores
Por entre as flores
A voz ressoa.

Ave tão bela
Não viu ninguém.



domingo, 14 de dezembro de 2014

NOTURNO — José Asunción Silva

FORMAS POÉTICAS 25 — NOTURNO
O noturno é um poema lírico, associado à noite e às trevas noturnas, visando expressar sentimentos melancólicos. Um exemplo extraordinário é o Noturno, do grande e infeliz poeta colombiano José Asunción Silva, que dou numa tradução literal.

NOTURNO

Uma noite,
Uma noite toda cheia de perfumes, de murmúrios e de música de asas,
uma noite,
em que ardiam na sombra nupcial e úmida os pirilampos fantásticos,
a meu lado, lentamente, contra mim cingida, toda,
muda e pálida,
como se um pressentimento de amarguras infinitas,
até o fundo mais secreto de tuas fibras te agitara,
pela senda que atravessa a planície florida,
caminhavas,
e a lua cheia
pelos céus azulados, infinitos e profundos esparzia sua luz branca,
e tua sombra,
fina e lânguida,
e minha sombra
pelos raios da lua projetada,
sobre as areias tristes
do caminho se juntavam
e eram uma
e eram uma
e eram uma una sombra ampla!
e eram uma una sombra ampla!
e eram uma una sombra ampla!

Esta noite
só, a alma
cheia das infinitas amarguras e agonias de tua morte,
separado de ti mesma, pela sombra, pelo tempo e a distância,
pelo infinito negro,
onde nossa voz não alcança,
só e mudo
pela senda caminhava,
e se ouviam os latidos dos cachorros para a lua,
para a lua pálida
e o coaxar
das rãs...
Senti frio; era o frio que tinham em tua alcova
tuas faces e tuas têmporas e tuas mãos adoradas,
entre as brancuras níveas
dos mortuários lençóis!
Era o frio do sepulcro, era o frio da morte,
era o frio do nada...
E minha sombra
pelos raios da lua projetada,
ia só
ia só
ia só pela estepe solitária!
E tua sombra esbelta e ágil,
fina e lânguida,
como nessa noite morna da morta primavera,
como nessa noite cheia de perfumes, de murmúrios e de musicas de asas
se acercou e marchou com ela,
se acercou e marchou com ela,
se acercou e marchou com ela... Oh! as sombras enlaçadas!
Oh! as sombras que se buscam e se juntam nas noites de negruras e de lágrimas!

O Nocturno original pode ser lido no link


sábado, 13 de dezembro de 2014

SUAVE FONTE PURA, QUE DESCES MURMURANDO — Silva Alvarenga

Formas Poéticas 24 — MADRIGAL
De origem italiana, tornou-se um poema de estrofe única, com metros alternados, como se pode ver no seguinte madrigal de Silva Alvarenga.

MADRIGAL 01

Suave fonte pura,
Que desces murmurando sobre a areia,
Eu sei que a linda Glaura se recreia
Vendo em ti de seus olhos a ternura;
Ela já te procura;
Ah! como vem formosa e sem desgosto!
Não lhe pintes o rosto:
Pinta-lhe, ó clara fonte, por piedade
Meu terno amor, minha infeliz saudade.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

NA SOLIDÃO PROFUNDA DA NOITE — Emílio Moura

FORMAS POÉTICAS 23 — MICROPOEMA
Micropoema, poema minuto, poema piada, é uma composição curta criada por Oswald de Andrade e adotada por muitos poetas modernistas. Dois exemplos de Oswald de Andrade:

CRÔNICA

Era uma vez
O mundo

ADOLESCÊNCIA

Aquele amor

Nem me fale

Um de Emílio Moura:

Na solidão profunda da noite
só houve na verdade um único sinal de vida:
o toque de silêncio.

Um de Carlos Drummond de Andrade:

COTA ZERO

Stop.
A vida parou
ou foi o automóvel?

Um de Chacal:

RÁPIDO E RASTEIRO

vai ter uma festa
que eu vou dançar
até o sapato pedir pra parar.
aí eu paro, tiro o sapato
e danço o resto da vida

Um de Francisco Alvim:

QUEM FALA

Está de malas prontas?
Aproveite bastante
Leia jornais; não ouça rádio de jeito nenhum
Tudo de bom
Não volte nunca

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

SI DE MI BAJA LIRA TANTO PUDIESE EL SON — Garcilaso de la Vega

A lira espanhola é composta por estrofes de cinco versos, alternam-se três heptassílabos e dois endecassílabos. As rimas seguem o esquema:
Heptassílabo       a
Endecassílabo     b
Heptassílabo       a
Heptassílabo       b
Endecassílabo     b

Como exemplo, vão as três primeiras estrofes da Oda a la Flor de Gnido, por Garcilaso de la Vega.

ODA A LA FLOR DE GNIDO
(Violante Sanseverino.)

Si de mi baja lira
Tanto pudiese el son, que un momento
Aplacase la ira
Del animoso viento
Y la furia del mar y el movimiento:

Y en ásperas montañas
Con el suave canto enterneciese
Las fieras alimañas,
Los árboles moviese,
Y al son confusamente los trajese:

No pienses que cantado
Seria de mí, hermosa flor de Gnido,
El fiero Marte airado,
A muerte convertido,
De polvo y sangre y de sudor teñido:

No Brasil, a lira obedece à vontade do poeta. Domina a forma o poeta árcade e conjurado Tomás Antônio Gonzaga, com seu livro consagrado, Marília de Dirceu. Dele vai a Lira 5.

LIRA 5

Acaso são estes
Os sítios formosos
Aonde passava
Os anos gostosos?
São estes os prados,
Aonde brincava,
Enquanto pastava
O gordo rebanho
Que Alceu me deixou?
São estes os sítios?
São estes; mas eu
O mesmo não sou.
Marília, tu chamas?
Espera, que eu vou.

Daquele penhasco
Um rio caía;
Ao som do sussurro
Que vezes dormia!
Agora não cobrem
Espumas nevadas
As pedras quebradas:
Parece que o rio
O curso voltou.
São estes os sítios?
São estes; mas eu
O mesmo não sou.
Marília, tu chamas?
Espera, que eu vou.

Meus versos, alegre,
Aqui repetia;
O eco as palavras
Três vezes dizia.
Se chamo por ele,
Já não me responde;
Parece se esconde,
Cansado de dar-me
Os ais que lhe dou.
São estes os sítios?
São estes; mas eu
O mesmo não sou.
Marília, tu chamas?
Espera, que eu vou.

Aqui um regato
Corria sereno
Por margens cobertas
De flores, e feno:
À esquerda se erguia
Um bosque fechado,
E o tempo apressado,
Que nada respeita,
Já tudo mudou.
São estes os sítios?
São estes; mas eu
O mesmo não sou.
Marília, tu chamas?
Espera, que eu vou.

Mas como discorro?
Acaso podia
Já tudo mudar-se
No espaço de um dia?
Existem as fontes,
E os freixos copados;
Dão flores os prados,
E corre a cascata,
Que nunca secou.
São estes os sítios?
São estes; mas eu
O mesmo não sou.
Marília, tu chamas?
Espera, que eu vou.

Minha alma, que tinha
Liberta a vontade,
Agora já sente
Amor, e saudade,
Os sítios formosos me agradaram,
Ah! Não se mudaram;
Mudaram-se os olhos,
De triste que estou.
São estes os sítios?
São estes; mas eu
O mesmo não sou.
Marília, tu chamas?
Espera, que eu vou.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

MÃE, AO OURO EU ME HUMILHO — Francisco de Quevedo

FORMAS POÉTICAS 21 — LETRILHA
Poema satírico breve, dividido em estrofes simétricas com um mesmo estribilho. Na Letrilha Satírica a seguir, Quevedo joga com as várias moedas espanholas, como dobrão, escudo, quartos, real, sencillo (moeda fictícia), etc.
LETRILHA SATÍRICA

Poderoso cavalheiro
é Dom Dinheiro.

Mãe, ao ouro eu me humilho,
ele é meu amante e meu amado,
pois, de puro enamorado,
anda sempre tão casquilho,
pois sendo dobrão1 ou singelo,
inda faz tudo que quero,
Poderoso cavalheiro
é Dom Dinheiro.

Nasce nas Índias honrado
Donde o mundo o acompanha:
Vem pra morrer em Espanha,
E é em Gênova enterrado:
e pois quem o traz ao lado
é formoso inda que fero:
Poderoso cavalheiro
é Dom Dinheiro.

É galante e é como um ouro.
Tem quebrada sua cor.
Pessoa de grande valor,
É tão cristão como mouro:
Pois dá e retira o decoro
E quebranta qualquer foro,
Poderoso cavalheiro
é Dom Dinheiro.

Importantes são seus pais,
E é de nobres descendente.
Porque nas veias do oriente
Todos os sangues são reais:
E pois é quem faz iguais
Tanto o duque que o vaqueiro,
Poderoso cavalheiro
é Dom Dinheiro.

Mas quem não se estatela
Vendo em sua glória estelar
Que o menos bom de seu lar
É Dona Branca2 de Castela?
Pois sobe o peão na sela
E do covarde faz guerreiro,
Poderoso cavalheiro
é Dom Dinheiro.

Seus escudos de armas nobres
São sempre tão principais,
Que sem seus escudos reais
Não há dobrões nem há cobres:
E pois até mesmo os robles
Sentem inveja do mineiro,
Poderoso cavalheiro
é Dom Dinheiro.

Por importar nos contratos
E dar tantos bons conselhos,
Na moradia dos velhos
Ratos o guardam de gatos:
E pois arromba recatos
E abranda o juiz severo,
Poderoso cavalheiro
é Dom Dinheiro.

E é tanta sua majestade,
Embora os dós sejam fartos,
Que com guardá-los em quartos
Nunca perde autoridade:
Porque, se dá qualidade
Ao nobre e ao esmoleiro,
Poderoso cavalheiro
é Dom Dinheiro.

Nunca vi damas ingratas
A seus gostos e afeição.
Que às caras de um dobrão
Fazem suas caras baratas;
E como já faz bravatas,
Com uma bolsa de couro,
Poderoso cavalheiro
é Dom Dinheiro.

Mais valem em qualquer terra,
Olhai se não é sagaz,
Seus escudos numa paz,
Que escudetes numa guerra:
E pois ao pobre lhe enterra
E faz nativo o estrangeiro,
Poderoso cavalheiro
é Dom Dinheiro.

1 dobrão - foi uma moeda de ouro espanhola que equivalia a dois escudos ou 32 reais.
2 Blanca - era uma moeda pouco valiosa de Castela (Espanha).  "No tener ni blanca" ou "estar sin blanca" significam "não ter dinheiro" ou "ser pobre".