Eu sou por Natureza feito para meu próprio bem; não para meu próprio mal.

Dos Ensinamentos Áureos de Epicteto.


domingo, 30 de novembro de 2014

PANDEMONIUM — Cruz e Souza

FORMAS POÉTICAS 12 — DÍSTICO
É uma estrofe de dois versos, também chamada pareado ou parelha.

Em fundo de tristeza e de agonia
O teu perfil passa-me noite e dia.

Aflito, aflito, amargamente aflito,
Num gesto estranho que parece um grito.

E ondula e ondula e palpitando vaga,
Como profunda, como velha chaga.

E paira sobre ergástulos e abismos
Que abrem as bocas cheias de exorcismos.

Com os olhos vesgos, a flutuar de esguelha,
Segue-te atrás uma visão vermelha.

Uma visão gerada do teu sangue
Quando no Horror te debateste exangue,

Uma visão que é tua sombra pura
rodando na mais trágica tortura.

A sombra dos supremos sofrimentos
Que te abalaram como negros ventos.

E a sombra as tuas voltas acompanha
Sangrenta, horrível, assombrosa, estranha.

E o teu perfil no vácuo perpassando
Vê rubros caracteres flamejando.

Vê rubros caracteres singulares
De todos os festins de Baltazares.

Por toda a parte escrito em fogo eterno:
Inferno! Inferno! Inferno! Inferno! Inferno!

E os emissários espectrais das mortes
Abrindo as grandes asas flamifortes...

E o teu perfil oscila, treme, ondula,
Pelos abismos eternais circula...

Circula e vai gemendo e vai gemendo
E suspirando outro suspiro horrendo.

E a sombra rubra que te vai seguindo
Também parece ir soluçando e rindo.

Ir soluçando, de um soluço cavo
Que dos venenos traz o torvo travo.

Ir soluçando e rindo entre vorazes
Satanismos diabólicos, mordazes.

E eu já nem sei se e realidade ou sonho
Do teu perfil o divagar medonho.

Não sei se é sonho ou realidade todo
Esse acordar de chamas e de lodo.

Tal é a poeira extrema confundida
Da morte a raios de ouro de outra Vida.

Tais são as convulsões do último arranco
Presas a um sonho celestial e branco.

Tais são os vagos círculos inquietos
Dos teus giros de lágrimas secretos.

Mas, de repente, eis que te reconheço,
Sinto da tua vida o amargo preço.

Eis que te reconheço escravizada,
Divina Mãe, na Dor acorrentada.

Que reconheço a tua boca presa
Pela mordaça de uma sede acesa

Presa, fechada pela atroz mordaça
Dos fundos desesperos da Desgraça.

Eis que lembro os teus olhos visionários
Cheios do fel de bárbaros Calvários.

E o teu perfil asas abrir parece
Para outra Luz onde ninguém padece...

Com doçuras feéricas e meigas
De Satãs juvenis, ao luar, nas veigas.

E o teu perfil forma um saudoso vulto
Como de Santa sem altar, sem culto.

Forma um vulto saudoso e peregrino
De força que voltou ao seu destino.

De ser humano que sofrendo tanto
Purificou-se nos Azuis do Encanto.

Subiu, subiu e mergulhou sozinho,
Desamparado, no fetal caminho.

Que lá chegou transfigurado e aéreo,
Com os aromas das flores do Mistério.

Que lá chegou e as mortas portas mudas
Fez abalar de imprecações agudas...

E vai e vai o teu perfil ansioso,
De ondulações fantásticas, brumoso.

E vai perdido e vai perdido, errante,
Trêmulo, triste, vaporoso, ondeante.

Vai suspirando, num suspiro vivo
Que palpita nas sombras incisivo...

Um suspiro profundo, tão profundo
Que arrasta em si toda a paixão do mundo.

Suspiro de martírio, de ansiedade,
De alívio, de mistério, de saudade.

Suspiro imenso, aterrador e que erra
Por tudo e tudo eternamente aterra...

O pandemonium de suspiros soltos
Dos condenados corações revoltos.

Suspiro dos suspiros ansiados
Que rasgam peitos de dilacerados.

E mudo e pasmo e compungido e absorto,
Vendo o teu lento e doloroso giro,
Fico a cismar qual é o rio morto
Onde vai divagar esse suspiro.

sábado, 29 de novembro de 2014

A UMA MENINA POR TER MANDADO CERTOS DOCES — Gregório de Matos

FORMAS POÉTICAS 11 — DÉCIMA
A décima é um poema constituído por uma monóstrofe, isto é, uma só estrofe, de dez versos, em geral redondilhas maiores. As décimas são muito utilizadas usadas pelos repentistas.

Para mim, que os versos fiz
De graça, um só doce basta.
Mas já sei que sois de casta
A fazer doces gentis:
E pois a fortuna quis
Dar-me em prêmio esta fartura,
Pintando uma formosura
Agora, por nova empresa,
Digo, da vossa grandeza,
Que sois da vida a doçura.

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

COPLAS POR LA MUERTE DE SU PADRE — Jorge Manrique (Fragmentos)


FORMAS POÉTICAS 10 — COPLA
Esta elegia foi composta com a chamada copla de pé quebrado, que são versos octossílabos combinados com tetrassílabos. O esquema desse poema se baseia na sextilha de pé quebrado, agrupada de duas em duas, rimando:
octossílabo rima a
octossílabo rima b
tetrassílabo rima c
octossílabo rima a
octossílabo rima b
tetrassílabo rima c

1
Recuerde el alma dormida,
avive el seso1 y despierte
contemplando
cómo se pasa la vida,
cómo se viene la muerte
tan callando,
cuán presto2 se va el placer,
cómo, después de acordado,
da dolor;
cómo, a nuestro parecer,
cualquiera tiempo pasado
fue mejor.

1 buen juicio
2 pronto

2
Pues si vemos lo presente
cómo en un punto se es ido
y acabado,
si juzgamos sabiamente,
daremos lo no venido
por pasado.
No se engañe nadie, no,
pensando que ha de durar
lo que espera,
más que duró lo que vio
porque todo ha de pasar
por tal manera.

3
Nuestras vidas son los ríos
que van a dar en la mar,
que es el morir;
allí van los señoríos
derechos a se acabar
y consumir;
allí los ríos caudales,1
allí los otros medianos
y más chicos,
y llegados, son iguales
los que viven por sus manos
y los ricos.

1 principales

7
Ved1 de cuán poco valor
son las cosas tras que andamos
y corremos,
que en este mundo traidor,
aun primero que muramos
las perdamos:
de ellas deshace la edad,
de ellas casos desastrados2
que acaecen,3
de ellas, por su calidad,
en los más altos estados
desfallecen.4

1 vean (español latinoamericano)
2 infelices
3 suceden
4 debilitan

12
Los placeres y dulzores1
de esta vida trabajada
que tenemos,
no son sino corredores,2
y la muerte, la celada3
en que caemos.
No mirando nuestro daño,
corremos a rienda suelta4
sin parar;
desque5 vemos el engaño
y queremos dar la vuelta,
no hay lugar.

1 dulzuras
2 soldados
3 trampa
4 a rienda suelta: con violencia o celeridad
5 desde que, así que

Vai em espanhol para manter a integridade das coplas  manriqueñas

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

CASIDA DA ROSA — Federico García Lorca

FORMAS POÉTICAS 09 — CASIDA
A casida é uma forma poética árabe, modificada pelos persas, e ainda mais pelos poetas espanhóis, que só mantiveram do original um sentimento de nostalgia e perda, e uma temática geralmente amorosa.

A rosa
não buscava a aurora:
quase eterna em seu ramo,
buscava outra coisa.

A rosa
não buscava saber nem sombra:
limite de carne e sonho,
buscava outra coisa.

A rosa
não buscava a rosa.
Imóvel no céu
buscava outra coisa.


quarta-feira, 26 de novembro de 2014

CANTO REAL DO POETA — Goulart de Andrade

FORMAS POÉTICAS 08 — CANTO REAL
O canto real é construído com cinco estrofes, de onze versos em geral, terminando por uma estância menor, chamada envio ou oferta, e que tem cinco ou seis versos. As rimas são simétricas. O último verso de cada estrofe é o mesmo. Pertence ao gênero lírico.  Em seguida, vai o Canto Real do Poeta, de Goulart de Andrade.

Numa planície rasa está deitado
Um membrudo Titã fitando o céu:
Parece um promontório alcantilado
Ao mar opondo o enorme vulto seu!
Inerte jaz-lhe o corpo. A fantasia,
Esta, as penas arrufa, e desafia
Num largo voo o espaço tentador...
Dá-lhe força o desejo de transpor
Os mistérios da célica planura,
Porém, minada de impotência e dor,
Estaca... e rola sobre a terra escura!

Pensa em galgar o páramo azulado,
— Leito da estrela e ninho do escarcéu ! —
Se embaixo é tudo mal-aventurado,
Em cima, por detrás daquele véu,
Há de vibrar em lúcida harmonia
O Éter! Talvez a luz de eterno dia
Aclare o gozo eterno, o eterno amor!...
E alonga o aflito olhar indagador:
Sonda a amplidão... ainda o alçar procura...
Porém, num gesto desconsolador,
Estaca... e rola sobre a terra escura!

Do cavernoso e grosso peito um brado
Horrendo e rouco, ríspido, irrompeu,
Misto de angústia, ameaça e desagrado;
Depois, lesto, de um salto, o corpo ergueu,
E andou, pesado de melancolia...
Rude calhau, no saibro que irradia,
Descobre, e aos céus o arroja com vigor
Para medir o espaço! Em vão se opor
Tenta a rajada : — a pedra a nuvem fura !
Mas, terminando o impulso animador,
Estaca... e rola sobre a terra escura!

Ao longe, nos confins do descampado,
Vendo um monte que em lavas acendeu
Outrora o augusto cimo alcandorado,
Presto seus passos para lá moveu.
Com os ressaltados músculos porfia
Em derrocar agreste penedia
Para levá-la ao alto, e sobrepor
Assim, montes a montes... Com furor
Lida, luta, ora a impele, ora a segura,
Mas a penha, no aspérrimo pendor,
Estaca... e rola sobre a terra escura!

Sem descansar do intento começado
Penedos e penedos suspendeu
Nos portentosos braços. Alquebrado
Inda um bruto penhasco arremeteu
Nuvens acima! Suores de agonia
Vão-lhe aljofrando o torso e a fronte fria...
Mas ele julga entrar pelo esplendor
Do céu! Ó tredo sonho embalador!
A nuvem passa: é o Vácuo, a imensa Altura!
E o Titã, faces num mortal palor,
Estaca... e rola sobre a terra escura!

OFERTÓRIO

Poeta, que tanto estiolas teu verdor
No embate rijo e desesperador
Pela Forma imortal que te amargura,
Se à Perfeição não chegas, lutador,
Estaca... e rola sobre a terra escura!

JÁ NO ROXO ORIENTE BRANQUEANDO — Correia Garção

FORMAS POÉTICAS 07 — CANTATA
A cantata surgiu na Itália no século 18 e pertence ao gênero lírico. Tem duas partes. A primeira, em decassílabos alternados com hexassílabos, chama-se recitativo. A segunda, em tetrassílabos, chama-se ária. A que se segue foi escrita por Correia Garção e acompanha o sofrimento de Dido, traída e abandonada por Eneias.

Já no roxo Oriente branqueando
As prenhes velas da Troiana frota
Entre as vagas azuis do mar dourado
Sobre as asas dos Ventos se escondiam.
A misérrima Dido
Pelos Paços reais vaga ululando,
Cos turvos olhos inda em vão procura
O fugitivo Eneias.
Só ermas ruas, só desertas praças
A recente Cartago lhe apresenta:
Com medonho fragor na praia nua
Fremem de noite as solitárias ondas;
E nas douradas grimpas
Das cúpulas soberbas
Piam noturnas agoureiras aves.
Do marmóreo sepulcro
Atônita imagina
Que mil vezes ouviu as frias cinzas
Do defunto Siqueu com débeis vozes,
suspirando chamar: Elisa , Elisa!
D'Orco aos tremendos Numens
Sacrifícios prepara;
Mas viu esmorecida
Em torno dos turícremos altares
Negra escuma ferver nas ricas taças,
E o derramado vinho
Em pélagos de sangue converter-se.
Frenética delira;
Pálido o rosto lindo,
A madeixa sutil desentrançada;
Já com trêmulo pé entra sem tino
No ditoso aposento,
Onde do infido amante
Ouviu enternecida
Magoados suspiros, brandas queixas.
Ali as cruéis Parcas lhe mostraram
As Ilíacas roupas, que pendentes
Do tálamo dourado descobriam
O lustroso pavês, a Teucra espada.
Com a convulsa mão súbito arranca
A lâmina fulgente da bainha,
E sobre o duro ferro penetrante
Arroja o tenro, cristalino peito:
E em borbotões de espuma murmurando
O quente sangue da ferida salta:
De roxas espadanas rociadas
Tremem da sala as dóricas colunas.
Três vezes tenta erguer-se,
Três vezes desmaia sobre o leito,
O corpo revolvendo, ao Céu levanta
Os macerados olhos.
Depois, atenta na lustrosa malha
Do prófugo Dardânio,
Estas últimas vozes repetia,
E os lastimosos, lúgubres acentos
Pelas áureas abóbadas voando,
Longo tempo depois gemer se ouviram.

Doces despojos
Tão bem logrados
Dos olhos meus,
Enquanto os fados,
Enquanto Deus
O consentiam.
Da triste Dido
A alma aceitai,
Destes cuidados
Me libertai.
Dido infelice
Assaz viveu;
D'alta Cartago
O muro ergueu:
Agora nua,
Já, de Caronte,
A sombra sua
Na barca feia,
De Flegetonte,
A negra veia
Sulcando vai.

Siqueu = marido de Dido (Elisa), assassinado pelo irmão dela; apareceu a Dido em sonho
Orco = Região dos mortos
Nume = Divindade mitológica
turícremo = Em que se queima incenso
pélago = abismo
infido = infiel
Ilíaca = de Tróia
Teucro = o mesmo que troiano
Dardânio = troiano
Caronte = barqueiro do inferno mitológico
Flegetonte = rio de fogo no inferno mitológico

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

MURMÚRIOS DA TARDE — Castro Alves

FORMAS POÉTICAS 06 — CANÇÃO REDONDA
A canção redonda tem sua origem na cansó redonda dos trovadores medievais. Pertence, portanto, ao gênero lírico. Nela, o verso inicial do poema é o mesmo que o arremata. Um exemplo é a famosa Vou-me embora pra Pasárgada, de Manuel Bandeira.
Uma variante da canção redonda repete, no final do poema, toda a estrofe inicial ou uma parte dela. Um exemplo é Beijo Eterno de Olavo Bilac.
Outra variante consiste na repetição do verso inicial da estrofe no final da mesma. Foi o que Castro Alves fez nas quintilhas de Murmúrios da Tarde:

MURMÚRIOS DA TARDE

Ontem à tarde, quando o sol morria,
A natureza era um poema santo.
De cada moita a escuridão saía,
De cada gruta rebentava um canto,
Ontem à tarde, quando o sol morria.

Do céu azul na profundeza escura
Brilhava a estrela, como um fruto louro,
E qual a foice, que no chão fulgura,
Mostrava a lua o semicírc'lo d'ouro,
Do céu azul na profundeza escura.

Larga harmonia embalsamava os ares!
Cantava o ninho — suspirava o lago...
E a verde pluma dos sutis palmares
Tinha das ondas o murmúrio vago...
Larga harmonia embalsamava os ares.

Era dos seres a harmonia imensa
Vago concerto de saudade infinda!
"Sol — não me deixes" diz a vaga extensa.
"Aura — não fujas" diz a flor mais linda;
Era dos seres a harmonia imensa!

"Leva-me! leva-me em teu seio amigo"
Dizia às nuvens o choroso orvalho,
"Rola que foges" diz o ninho antigo,
"Leva-me ainda para um novo galho...
"Leva-me! leva-me em teu seio amigo."

"Dá-me inda um beijo, antes que a noite venha!"
"Inda um calor, antes que chegue o frio..."
E mais o musgo se conchega à penha
E mais à penha se conchega o rio...
"Dá-me inda um beijo, antes que a noite venha!"

E tu no entanto no jardim vagavas,
Rosa de amor, celestial Maria...
Ai! como esquiva sobre o chão pisavas,
Ai! como alegre a tua boca ria...
E tu no entanto no jardim vagavas.

Eras a estrela transformada em virgem!
Eras um anjo, que se fez menina!
Tinhas das aves a celeste origem.
Tinhas da lua a palidez divina,
Eras a estrela transformada em virgem!

Flor! Tu chegaste de outra flor mais perto.
Que bela rosa! que fragrância meiga!
Dir-se-ia um riso no jardim aberto,
Dir-se-ia um beijo, que nasceu na veiga...
Flor! Tu chegaste de outra flor mais perto!...

E eu, que escutava o conversar das flores,
Ouvi, que a rosa murmurava ardente:
"Colhe-me, ó virgem, — não terei mais dores,
"Guarda-me, ó bela, no teu seio quente..."
E eu escutava o conversar das flores.

"Leva-me! leva-me, ó gentil Maria!"
Também então eu murmurei cismando...
"Minh'alma é rosa, que a geada esfria...
"Dá-lhe em teus seios um asilo brando...
"Leva-me! leva-me, ó gentil Maria!..."

domingo, 23 de novembro de 2014

MORENINHA — Casimiro de Abreu

FORMAS POÉTICAS 05 — CANÇÃO
As canções se dividem em três tipos: trovadorescas, clássicas, e românticas ou modernas. Pertencem ao gênero lírico.
As primeiras, dos trovadores medievais, eram cantigas de amor (pastorelas, desacordos, tenções) e as cantigas de amigo (alvas, serenas, bailias, barcarolas e romarias).
As canções clássicas surgiram no Renascimento e perduraram até o século 18. Tinham três partes: introdução, texto e ata, em decassílabos alternados com hexassílabos.
As românticas ou modernas subdividem-se em religiosas, patrióticas, guerreiras, amorosas ou eróticas, nostálgicas, sertanejas (cultas e incultas).

Um exemplo de canção amorosa é a Moreninha, de Casimiro de Abreu.

Moreninha, Moreninha,
Tu és do campo a rainha,
Tu és senhora de mim;
Tu matas todos d'amores,
Faceira, vendendo as flores
Que colhes no teu jardim.

Quando tu passas n'aldeia
Diz o povo à boca cheia:
— "Mulher mais linda não há!
"Ai vejam como é bonita
"Co'as tranças presas na fita,
"Co'as flores no samburá! —

Tu és meiga, és inocente
Como a rola que contente
Voa e folga no rosal;
Envolta nas simples galas,
Na voz, no riso, nas falas,
Morena — não tens rival!

Tu, ontem, vinhas do monte
E paraste ao pé da fonte
À fresca sombra do til;
Regando as flores, sozinha,
Nem tu sabes, Moreninha,
O quanto achei-te gentil!

Depois segui-te calado
Como o pássaro esfaimado
Vai seguindo a juriti;
Mas tão pura ias brincando,
Pelas pedrinhas saltando,
Que eu tive pena de ti!

E disse então: — Moreninha,
Se um dia tu fores minha,
Que amor, que amor não terás!
Eu dou-te noites de rosas
Cantando canções formosas
Ao som dos meus ternos ais.

Morena, minha sereia,
Tu és a rosa da aldeia,
Mulher mais linda não há;
Ninguém t'iguala ou t'imita
Co'as tranças presas na fita,
Co'ás flores no samburá!

Tu és a deusa da praça,
E todo o homem que passa
Apenas viu-te... parou!
Segue depois seu caminho
Mas vai calado e sozinho
Por que sua alma ficou!

Tu és bela, Moreninha,
Sentada em tua banquinha
Cercada de todos nós;
Rufando alegre o pandeiro,
Como a ave no espinheiro
Tu soltas também a voz:

— "Oh! quem me compra estas flores?
"São lindas como os amores,
"Tão belas não há assim;
"Foram banhadas de orvalho,
"São flores do meu serralho,
"Colhi-as no meu jardim."

Morena, minha Morena,
És bela, mas não tens pena
De quem morre de paixão!
— Tu vendes flores singelas
E guardas as flores belas,
As rosas do coração?!...

Moreninha, Moreninha,
Tu és das belas rainha,
Mas nos amores és má;
— Como tu ficas bonita
Co'as tranças presas na fita,
Co'as flores no samburá!

Eu disse então: — "Meus amores,
"Deixa mirar tuas flores,
"Deixa perfumes sentir!"
Mas n'aquele doce enleio,
Em vez das flores, no seio,
No seio te fui bulir!

Como nuvem desmaiada
Se tinge de madrugada
Ao doce albor da manhã ;
Assim ficaste, querida,
A face em pejo acendida,
Vermelha como a romã!

Tu fugiste. feiticeira,
E de certo mais ligeira
Qualquer gazela não é ;
Tu ias de saia curta...
Saltando a moita de murta
Mostraste, mostraste o pé!

Ai! Morena, ai! meus amores,
Eu quero comprar-te as flores,
Mas dá-me um beijo também;
Que importam rosas do prado
Sem o sorriso engraçado
Que a tua boquinha tem?

Apenas vi-te, sereia,
Chamei-te — rosa da aldeia —
Como mais linda não há.
— Jesus ! Como eras bonita
Co'as tranças presas na fita,
Co'as flores no samburá!

til = tília, tipo de árvore cultivada para dar sombra

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

O GONDOLEIRO DO AMOR — Castro Alves

FORMAS POÉTICAS 04 — BARCAROLA
A barcarola é um tipo antigo de poema e os trovadores medievais já usavam essa forma. Bilac e Passos, no Tratado de Versificação, dizem apenas que a barcarola é um tipo de canção nacional da Itália.
Na verdade, é a canção típica dos gondoleiros de Veneza. É uma composição, sempre relacionada a barcos e à água, em que se demonstram emoções ternas. Pertence ao gênero lírico.
Castro Alves escreveu, em redondilha maior, a seguinte barcarola:

O Gondoleiro do Amor

Teus olhos são negros, negros,
Como as noites sem luar...
São ardentes, são profundos,
Como o negrume do mar;

Sobre o barco dos amores,
Da vida boiando à flor,
Douram teus olhos a fronte
Do Gondoleiro do amor.

Tua voz é cavatina
Dos palácios de Sorrento,
Quando a praia beija a vaga,
Quando a vaga beija o vento.

E como em noites de Itália
Ama um canto o pescador,
Bebe a harmonia em teus cantos
O Gondoleiro do amor.

Teu sorriso é uma aurora
Que o horizonte enrubesceu ,
—Rosa aberta com o biquinho
Das aves rubras do céu;

Nas tempestades da vida
Das rajadas no furor,
Foi-se a noite, tem auroras
O Gondoleiro do amor.

Teu seio é vaga dourada
Ao tíbio clarão da lua,
Que, ao murmúrio das volúpias,
Arqueja, palpita nua;

Como é doce, em pensamento,
Do teu colo no languor
Vogar, naufragar, perder-se
O Gondoleiro do amor!?

Teu amor na treva é — um astro,
No silêncio uma canção,
É brisa — nas calmarias,
É abrigo — no tufão;

Por isso eu te amo, querida,
Quer no prazer, quer na dor... Rosa!
Canto! Sombra! Estrela!
Do Gondoleiro do amor.

O Poeta da Morte, Augusto dos Anjos, compôs a sua, também em redondilha maior:

Barcarola

Cantam nautas, choram flautas
Pelo mar e pelo mar
Uma sereia a cantar
Vela o Destino dos nautas.

Espelham-se os esplendores
Do céu, em reflexos, nas
Águas, fingindo cristais
Das mais deslumbrantes cores.

Em fulvos filões doirados
Cai a luz dos astros por
Sobre o marítimo horror
Como globos estrelados.

Lá onde as rochas se assentam
Fulguram como outros sóis
Os flamívomos faróis
Que os navegantes orientam.

Vai uma onda, vem outra onda
E nesse eterno vaivém
Coitadas! não acham quem,
Quem as esconda, as esconda...

Alegoria tristonha
Do que pelo Mundo vai!
Se um sonha e se ergue, outro cai;
Se um cai, outro se ergue e sonha.

Mas desgraçado do pobre
Que em meio da Vida cai!
Esse não volta, esse vai
Para o túmulo que o cobre.

Vagueia um poeta num barco.
O Céu, de cima, a luzir
Como um diamante de Ofir
Imita a curva de um arco.

A Lua — globo de louça —
Surgiu, em lúcido véu.
Cantam! Os astros do Céu
Ouçam e a Lua Cheia ouça!

Ouça do alto a Lua Cheia
Que a sereia vai falar...
Haja silêncio no mar
Para se ouvir a sereia.

Que é que ela diz?! Será uma
História de amor feliz?
Não! O que a sereia diz
Não é história nenhuma.

É como um requiem profundo
De tristíssimos bemóis...
Sua voz é igual à voz
Das dores todas do mundo.

“Fecha-te nesse medonho
“Reduto de Maldição,
“Viajeiro da Extrema-Unção,
“Sonhador do último sonho!

“Numa redoma ilusória
“Cercou-te a glória falaz,
“Mas nunca mais, nunca mais
“Há de cercar-te essa glória!

“Nunca mais! Sê, porém, forte.
“O poeta é como Jesus!
“Abraça-te à tua Cruz
“E morre, poeta da Morte!”

— E disse e porque isto disse
O luar no Céu se apagou...
Súbito o barco tombou
Sem que o poeta o pressentisse!

Vista de luto o Universo
E Deus se enlute no Céu!
Mais um poeta que morreu,
Mais um coveiro do Verso!

Cantam nautas, choram flautas
Pelo mar e pelo mar
Uma sereia a cantar
Vela o Destino dos nautas!

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

BALADA — Filinto de Almeida

FORMAS POÉTICAS 03 — BALADA
As baladas narrativas são antigos poemas medievais, de tema cavaleiresco, característicos dos países de língua alemã e inglesa. Pertencem ao gênero épico, ou narrativo e didático. Depois da Idade Média, as baladas passaram a nomear poemas narrativos de eventos romanescos, lendários ou fantásticos.
Exemplos de balada narrativa são O Rei de Tule de Goethe, e O Antigo Marinheiro (The Rime of the Ancient Mariner) de Coleridge. No Brasil, Manuel Bandeira escreveu a Balada de Santa Maria Egipcíaca.
A balada de forma fixa foi muito praticada pelos poetas parnasianos. Segundo Bilac e Passos, in Tratado de Versificação:
"Alguns poetas do Brasil adaptaram à métrica nacional a balada francesa, típica, cuja forma foi fixada por Villon e Marot, com três oitavas, em redondilhas (septissílabos), ou em octissílabos, com as mesmas rimas, e seguidas de uma quadra em que as rimas se repetem."

Esse tipo de Balada pertence ao gênero lírico. A Balada de Filinto de Almeida, que se segue, é exemplo disso.

Por noite velha, no castelo,
Vasto solar dos meus avós,
Foi que eu ouvi, num ritornelo,
Do pagem loiro a doce voz.
Corri á ogiva para vê-lo,
Vitrais de par em par abri,
E, ao ver brilhar o meu cabelo,
Ele sorriu-me, eu lhe sorri.

Venceu-me logo um vivo anelo,
Queimou-me logo um fogo atroz;
E toda a longa noite velo,
Pensando em vê-lo e ouvir-lhe a voz.
Triste, sentada no escabelo,
Só com a aurora adormeci...
Sonho, e no sonho, haveis de crê-lo?
Inda o meu pagem me sorri!

Seguindo a amá-lo com desvelo,
Por noite velha, um ano após,
Termina enfim o meu flagelo,
Felizes fomos ambos nós...
Como isto foi, nem sei dizê-lo!
No colo seu desfaleci...
E, alta manhã, no seu morzelo,
O pagem foge, e inda sorri...

Dias depois, do pagem belo,
Junto ao solar onde eu o ouvi,
Ao golpe horrível do cutelo
Rola a cabeça, e inda sorri...

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

VENCIDO ESTÁ DE AMOR MEU PENSAMENTO — Camões

FORMAS POÉTICAS 02 — ACRÓSTICO
Acróstico é um tipo de composição poética em que as letras do início, do meio ou do fim de cada verso formam, quando lidas na vertical, um nome ou uma mensagem. Pertence ao gênero lírico.
Roberto Carlos compôs uma música chamada exatamente Acróstico, em que a primeira parte forma o nome de Maria Rita.
M ais que a minha própria vida
A lém do que eu sonhei pra mim
R aio de luz
I nspiração
A mor você é assim
R ima dos versos que eu canto
I menso amor que eu falo tanto
T udo pra mim
A mo você assim

M eu coração
E ternamente
U m dia eu te entreguei

A mo você
M ais do que tudo eu sei
O sol
R aiou pra mim quando eu te encontrei

O poeta Pedro Lavirod, em O Livro dos Acrósticos, tem o seguinte fábula acróstico:

O SAPO E A BORBOLETA

Sabia que sou mais bonita?
A borboleta disse, ainda, ao sapo:
Pobre batráquio asqueroso,
O que você é, me causa nojo!

E o sapo, com toda a calma do mundo,

Assim respondeu à borboleta:

Bonita é minha natureza anfíbia
O que, também, me protege mais,
Rios ou solo me dão guarida
Brejos e até mesmo matagais!
O que você faz para se defender?
Livre, viajo sobre todos os animais!
E, num segundo, o sapo projetou
Tamanha língua no espaço,
Acabando, assim, com o embaraço!

O poeta e teatrólogo Antônio José da Silva construiu um acróstico com as iniciais de seu nome, sendo que na época o José se escrevia Joseph:

Amigo leitor, prudente,
Não crítico rigoroso,
Te desejo, mas, piedoso,
Os meus defeitos consente:
Nome não busco excelente,
Insigne entre os escritores;
Os aplausos inferiores
Julgo a meu plectro bastantes;
Os encômios relevantes
São para engenhos maiores.
Esta cômica harmonia
Passatempo é douto e grave;
Honesta, alegre e suave,
Divertida a melodia.
Apolo, que ilustra o dia,
Soberano me reparte
Ideias, facúndia e arte,
— Leitor, para divertir-te,
Vontade para servir-te,
Afeto para agradar-te.

Outro tipo de acróstico exige que as iniciais sejam lidas, primeiro no início dos versos, e depois no meio, a partir da cesura. É o caso do soneto 159 de Camões, com um recado para sua amada:

    Vencido está de amor           Meu pensamento
    O mais que pode ser,             Vencida a vida,
    Sujeita a vos servir e              Instituída,
    Oferecendo tudo                   A vosso intento.
    Contente deste bem              Louva o momento,
    Ou hora em que se viu          Tão bem perdida;
    Mil vezes desejando,            Assi ferida,
    Outras mil renovar                Seu perdimento.
    Com esta pretensão              Está segura
    A causa que me guia             Nesta empresa
    Tão sobrenatural,                  Honrosa, e alta.
    Jurando não querer               Outra ventura,
    Votando só por vós              Rara firmeza,
    Ou ser no vosso amor           Achado em falta.

terça-feira, 18 de novembro de 2014

ACALANTO DE JOHN TALBOT — Manuel Bandeira

FORMAS POÉTICAS 01 — ACALANTO
Acalanto é uma simples canção para adormecer as crianças. Uma canção de ninar. Pertence ao gênero lírico.
Um exemplo anônimo de acalanto é:

Boi, boi, boi
Boi da cara preta
Pega este menino que tem medo de careta

Não, não, não
Não pega ele não
Ele é bonitinho, ele chora coitadinho

O grande compositor e cantor Dorival Caymmi utilizou essa cantiga popular no final do Acalanto, que compôs para sua filha Nana, hoje maravilhosa cantora da MPB.

O poeta Manuel Bandeira escreveu, em redondilha menor, esse Acalanto de John Talbot:

Dorme, meu filhinho,
Dorme sossegado.
Dorme, que a teu lado
Cantarei baixinho.
O dia não tarda...
Vai amanhecer:
Como é frio o ar!
O anjinho da guarda
Que o Senhor te deu,
Pode adormecer,
Pode descansar,
Que te guardo eu.

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

VÊNUS - Camilo Pessanha

1
À flor da vaga, o seu cabelo verde,
Que o torvelinho enreda e desenreda...
O cheiro a carne que nos embebeda!
Em que desvios a razão se perde!

Pútrido o ventre, azul e aglutinoso,
Que a onda, crassa, num balanço alaga,
E reflui (um olfato que se embriaga)
Como em um sorvo, murmura de gozo.

O seu esboço, na marinha turva...
De pé flutua, levemente curva;
Ficam-lhe os pés atrás, como voando...

E as ondas lutam, como feras mugem,
A lia em que a desfazem disputando,
E arrastando-a na areia, co'a salsugem.

2
Singra o navio. Sob a água clara
Vê-se o fundo do mar, de areia fina...
— Impecável figura peregrina,
A distância sem fim que nos separa!

Seixinhos da mais alva porcelana,
Conchinhas tenuemente cor de rosa,
Na fria transparência luminosa
Repousam, fundos, sob a água plana.

E a vista sonda, reconstrui, compara,
Tantos naufrágios, perdições, destroços!
— Ó fúlgida visão, linda mentira!

Róseas unhinhas que a maré partira...
Dentinhos que o vaivém desengastara...
Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos...

Camilo Pessanha, Clepsidra.

sábado, 15 de novembro de 2014

CANTIGA — D. Francisco de Portugal, Conde do Vimioso

Se alguém deseja prazer
Viva em-no esperar,
Que tudo o mais há de achar
Maneira de o perder!
Diga-me : quem alcançou
Bem algum que desejasse,
Se nunca tanto folgou
Que d'isso se contentasse?
E pois se acaba o prazer
Que se espera, em se alcançar,
Quem esperar de o ter,
Não ouse de o tomar!

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

ACORDANDO DA EMBRIAGUEZ NUM DIA DE PRIMAVERA - Li Po

"A Vida no Mundo não é mais que um grande sonho;
Não estragarei isto por nenhum trabalho ou cuidado".
Dizendo assim, estive bêbado o dia todo,
Jazendo desamparado na varanda em frente de minha porta.
Quando acordei, pestanejei ao ver a grama do jardim;
Um pássaro solitário cantava entre as flores.
Eu me perguntei, tinha chovido ou feito bom tempo?
O vento da Primavera conversava com o pássaro da mangueira.
Movido por sua canção comecei logo a suspirar,
E como havia vinho lá enchi minha própria taça.
Cantando de modo selvagem esperei pela ascensão da lua;
Quando minha canção terminou, todos os meus sentidos se foram.

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

CANTAR DE AMIGO — Rei D. Denis

"Ay flores! ay flores do verde pino,
Se sabedes novas do meu amigo?
Ay Deus! ond' está?

Ay flores! ay flores do verde ramo,
Se sabedes novas do meu amado?
Ay Deus! ond' está?

Se sabedes novas do meu amigo,
Aquel que mentiu do que pôs comigo?
Ay Deus! ond' está?

Se sabedes novas do meu amado
Aquel que mentiu do que me ha jurado.
Ay Deus! ond' está?"

"Vós preguntades polo voss' amigo?
E eu bem vos digo que é san' e vivo.
Ay Deus! ond' está?

Vós preguntades polo voss' amado?
E eu bem vos digo que é viv' e sano.
Ay Deus! ond' está?

E eu bem vos digo que é san' e vivo
E será vosc' ant' o prazo saido.
Ay Deus! ond' está?

E eu bem vos digo que é viv' e sano
E será vosc' ant' o prazo passado.
Ay Deus! ond' está?"

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

DOCE IRA, DOCE MAL, DOCE BRANDURA — Petrarca

Doce ira, doce mal, doce brandura,
Doce afã, doce peso que hei sentido,
Doce falar tão docemente ouvido
E que é doce de luz ou de aura pura.

Alma, sofre calada o que tortura,
Mitiga o doce afã que te há ofendido
Com o doce louvor que hás recebido
Por esta que é minha única ventura.

Dia virá que suspirando diga
Alguém cheio de inveja: Assaz sofrera
Este por belo amor e seu enredo.

Outros: Ó sorte dura e tão imiga!
Por que esta doce dama não nascera
Pouco mais tarde ou eu pouco mais cedo?

terça-feira, 11 de novembro de 2014

A SEREIA DE LENAU — Manuel Bandeira

Quando na grave solidão do Atlântico
Olhavas da amurada do navio
O mar já luminoso e já sombrio,
Lenau! teu grande espírito romântico

Suspirava por ver dentro das ondas
Até o álveo profundo das areias,
A enxergar alvas formas de sereias
De braços nus e nádegas redondas.

Ilusão! que sem cauda aqueles seres,
Deixando o ermo monótono das águas,
Andam em terra suscitando mágoas,
Misturadas às filhas das mulheres.

Nikolaus Lenau, poeta da amargura!
Uma te amou, chamava-se Sofia.
E te levou pela melancolia
Ao oceano sem fundo da loucura.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

A ANTÔNIO NOBRE — Manuel Bandeira

Tu que penaste tanto e em cujo canto
Há a ingenuidade santa do menino;
Que amaste os choupos, o dobrar do sino,
E cujo pranto faz correr o pranto:

Com que magoado olhar, magoado espanto
Revejo em teu destino o meu destino!
Essa dor de tossir bebendo o ar fino,
A esmorecer e desejando tanto...

Mas tu dormiste em paz como as crianças.
Sorriu a Glória às tuas esperanças
E beijou-te na boca... O lindo som!

Quem me dará o beijo que cobiço?
Foste conde aos vinte anos... Eu, nem isso...
Eu, não terei a Glória... nem fui bom.

domingo, 9 de novembro de 2014

NÃO MATES AQUELA MOSCA! — Kobayashi Issa

Adendo a uma postagem anterior, que foi uma citação de Lin Yutang. Nela se lê:

Pensamento Incongruente
Não esmagues aquela mosca: ela está esfregando as mãos e os pés.
Lin Yutang, Com Amor e Ironia, 4

Agora, encontrei um haicai de Kobayashi Issa, que elabora a mesma ideia, com um toque a mais:

Olha, não mates aquela mosca!
Está te fazendo uma oração,
Esfregando as mãos e os pés.

sábado, 8 de novembro de 2014

AMOR PRÓPRIO — Voltaire

Um mendigo dos arredores de Madrid esmolava nobremente. Disse-lhe um transeunte:
— O sr. não tem vergonha de se dedicar a mister tão infame, quando podia trabalhar?
— Senhor, — respondeu o pedinte — estou lhe pedindo dinheiro e não conselhos. — E com toda a dignidade castelhana virou-lhe as costas.
Era um mendigo soberbo. Um nada lhe feria a vaidade. Pedia esmola por amor de si mesmo, e por amor de si mesmo não suportava reprimendas.
Viajando pela Índia, topou um missionário com um faquir carregado de cadeias, nu como um macaco, deitado sobre o ventre e deixando-se chicotear em resgate dos pecados de seus patrícios hindus, que lhe davam algumas moedas do país.
— Que renúncia de si próprio! — dizia um dos espectadores.
— Renúncia de mim próprio? — retorquiu o faquir. — Ficai sabendo que não me deixo açoitar neste mundo senão para vos retribuir no outro. Quando fordes cavalo e eu cavaleiro.
Tiveram pois plena razão os que disseram ser o amor de nós mesmos a base de todos as nossas ações — na Índia, na Espanha como em toda a terra habitável.
Supérfluo é provar aos homens que têm rosto. Supérfluo também seria demonstrar-lhes possuírem amor próprio. O amor próprio é o instrumento da nossa conservação. Assemelha-se ao instrumento da perpetuação da espécie. Necessitamo-lo. É-nos caro. Deleita-nos. — E cumpre ocultá-lo.

Voltaire, Dicionário Filosófico.

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

NESTE DIA FATAL, INFAUSTO DIA — Lereno Selinuntino

Neste Dia fatal, infausto Dia,
Nasceu ao Mundo mais um desgraçado;
E bem que pelas Musas embalado,
Só para Melpoméne é que nascia.

Quando a funesta aurora ressurgia,
O lúcido caminho achou turbado,
Negro vapor da terra aos Céus alçado,
Veio empecer-lhe a alegre louçania;

Três vezes troa o Céu, e do Cocito
Soltou a Inveja as viperinas tranças,
Soou da parte esquerda um rouco grito:

Ah! nasceste infeliz, e em vão te cansas;
Lereno, já teu fado estava escrito,
Serão teu maior bem vãs esperanças.

Melpômene era a musa da tragédia. O poeta mudou o acento por razões de métrica.
louçania = elegância
Cocito é um dos rios do inferno mitológico (Hades).

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

CARTA DE LIBÂNIO A ARISTONETO — Francisco Rodrigues Lobo

As cartas jocosas, ou de galantaria, têm mais campo, e liberdade para se poderem usar nelas alguns termos fora das limitações das nossas regras; porque assim em se entenderem mais, como em se sujeitarem menos, ficam desobrigados das primeiras leis, que são brevidade sem enfeite, clareza sem rodeios, propriedade sem metáforas; pois o termo da graça e galantaria, nisso se diferencia do sisudo e pontual; não negando que há algumas que não perdem a graça nem o siso, como é uma que Libânio escreveu a Aristoneto, que dizia:

"Onde vos achais, sei que dizeis sempre mal de mim; eu pelo contrário não perco ocasião de dizer louvores vossos; porém quem a ambos nos conhecer, a nenhum de nós há de dar crédito."
 
Francisco Rodrigues Lobo, Corte na Aldeia e Noites de Inverno, Diálogo III.
 
Libânio foi um filósofo sofista grego e professor de retórica.
Aristoneto de Nicéia foi um dos principais escritores gregos de epístolas.

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

SONETO 12 — António Ferreira

Quando entoar começo com voz branda
Vosso nome d'amor, doce, e suave,
A terra, o mar, vento, água, flor, folha, ave
Ao brando som s'alegra, move, e abranda.

Nem nuvem cobre o Céu, nem na gente anda
Trabalhoso cuidado, ou peso grave,
Nova cor toma o Sol, ou se erga, ou lave
No claro Tejo, e nova luz nos manda.

Tudo se ri, se alegra, e reverdece.
Todo Mundo parece que renova,
Nem há triste planeta, ou dura sorte.

A minh'alma só chora, e se entristece.
Maravilha d'Amor cruel, e nova!
O que a todos traz vida, a mim traz morte.

terça-feira, 4 de novembro de 2014

SONETO A ORFEU I, 3 - Rainer Maria Rilke

Um Deus pode fazer isto. Mas, dize-me, como
há de segui-lo um homem com sua lira?
A mente está em desacordo. Onde corações se cruzam, 
não haverá nenhum templo a Apolo.

A vera canção, como ensinas, não é desejo,
nem esforço por uma coisa obtida no fim.
A canção é Ser. Para o Deus, fácil.
Mas, quando somos nós? E quando Ele mudará,

então, em nosso ser toda a Terra e as Estrelas?
Não é bastante, jovem, amar, ainda quando
lute a voz contra tua boca – aprende

a esquecer que cantaste. O grito passa.
Na verdade, cantar é um sopro diverso:
um sopro do vazio. Uma rajada no Deus. Um vento.

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

CASA SEM DONO — Sanetomo Minamoto

Embora minha casa pareça sem dono,
Quando eu tiver ido embora,
Oh! árvore de ameixa, que cresce pelos beirais,
Não te esqueças de mostrar
Teus brotos na primavera, te peço.

Este poema foi escrito na manhã do dia em que Sanetomo Minamoto foi assassinado.

domingo, 2 de novembro de 2014

OS ROSTOS IMÓVEIS — Carlos Drummond de Andrade

A Otto Maria Carpeaux

Pai morto, namorada morta.
Tia morta, irmão nascido morto.
Primos mortos, amigo morto.
Avô morto, mãe morta
(mãos brancas, retrato sempre inclinado na parede, grão de poeira nos olhos).
Conhecidos mortos, professora morta.

Inimigo morto.

Noiva morta, amigas mortas.
Chefe de trem morto, passageiro morto.
Irreconhecível corpo morto: será homem? bicho?
Cão morto, passarinho morto.
Roseira morta, laranjeiras mortas.
Ar morto, enseada morta.
Esperança, paciência, olhos, sono, mover de mão: mortos.
Homem morto. Luzes acesas.
Trabalha à noite, como se fora vivo.

Bom dia! Está mais forte (como se fora vivo).

Morto sem notícia, morto secreto.
Sabe imitar fome, e como finge amor.

E como insiste em andar, e como anda bem.
Podia cortar casas, entra pela porta.

Sua mão pálida diz adeus à Rússia.
O tempo nele entra e sai sem conta.
Os mortos passam rápidos, já não há pegá-los.
Mal um se despede, outro te cutuca.
Acordei e vi a cidade:
eram mortos mecânicos,
eram casas de mortos,
ondas desfalecidas,
peito exausto cheirando a lírios,
pés amarrados.
Dormi e fui à cidade:
toda se queimava,
estalar de bambus,
boca seca, logo crispada.
Sonhei e volto à cidade.
Mas já não era a cidade.
Estavam todos mortos, o corregedor-geral verificava etiquetas nos cadáveres.
O próprio corregedor morrera há anos, mas sua mão continuava implacável.
O mau cheiro zumbia em tudo.

Desta varanda sem parapeito contemplo os dois crepúsculos.
Contemplo minha vida fugindo a passo de lobo, quero detê-la, serei mordido?
Olho meus pés, como cresceram, moscas entre eles circulam.
Olho tudo e faço a conta, nada sobrou, estou pobre, pobre, pobre,
mas não posso entrar na roda,
não posso ficar sozinho,
a todos beijarei na testa,
flores úmidas esparzirei,
depois. . . não há depois nem antes.
Frio há por todos os lados,
e um frio central, mais branco ainda.

Mais frio ainda. ..
Uma brancura que paga bem nossas antigas cóleras e amargos.. .
Sentir-me tão claro entre vós, beijar-vos e nenhuma poeira em boca ou rosto.
Paz de finas árvores,
de montes fragílimos lá em baixo, de ribeiras tímidas, de gestos que já não podem mais irritar,
doce paz sem olhos, no escuro, no ar.
Doce paz em mim,
em minha família que veio de brumas sem corte de sol
e por estradas subterrâneas regressa às suas ilhas,
na minha rua, no meu tempo — afinal — conciliado,
na minha cidade natal, no meu quarto alugado,
na minha vida, na vida de todos, na suave e profunda morte de mim e de todos.

sábado, 1 de novembro de 2014

ADEUS AO MUNDO — Laurindo Rabello

I
Já do batel da vida
Sinto tomar-me o leme a mão da morte:
E perto avisto o porto
Imenso nebuloso, e sempre noite,
Chamado — Eternidade!
Como é tão belo o sol! Quantas grinaldas
Não tem de mais a aurora!!
Como requinta o brilho a luz dos astros!
Como são recendentes os aromas
Que se exalam das flores! Que harmonia
Não se desfruta no cantar das aves,
No embater do mar, e das cascatas,
No sussurrar dos límpidos ribeiros,
Na natureza inteira, quando os olhos
Do moribundo, quase extintos, bebem
Seus últimos encantos!

II
Quando eu guardava, ao menos na esperança,
Para o dia seguinte o sol de um dia,
De uma noite o luar para outras noites;
Quando durar contava mais que um prado,
Mais que o mar, que a cascata erguer meu canto,
E murmurá-lo num jardim de amores;
Quando julgava a natureza minha,
Desdenhava os seus dons: ei-la vingada:
Cedo de vermes rojarei ludibrio,
E vida alardearão fracos arbustos
Sobre meu lar de morto! A noite, o dia,
O inverno, o verão, a primavera,
A aurora, a tarde, as nuvens, e as estrelas,
A rir-se passarão sobre meus ossos!
Não importa: não é perder o mundo
O que me azeda os pálidos instantes
Que conto por gemidos. Meu tormento,
Minha dor, é morrer longe da pátria,
Da mãe, e dos irmãos que tanto adoro.

III
Quando da pátria me ausentei, não tinha
Nada, que lhes deixar, que lhes dissesse
O que eram eles dentro de minh’alma.
Mendigo, a quem cedi pequena esmola,
Deu-me quatro sementes de saudades;
Ao meu jardim doméstico levei-as,
Cavei, reguei a terra com meu pranto,
E plantei as saudades. Soluçando
Chamei ali os meus: “Aqui vos deixo
(Disse apontando à plantação) “em flores
“Minh’alma toda inteira; aqui vos deixo
“Um tesouro enterrado. Joias, oiro,
“Riquezas, não, não tem, porém na terra
Estéril não será.” Ondas de pranto
Afogaram-me a voz: houve silêncio;
Palpei de novo o chão; vi que de novo
Cavado estava! A terra se afundara,
E as sementes nadavam sobre lágrimas,
Que minha mãe e minha irmã choravam...
Replantei-as, orei, beijei a terra,
E parti... Trouxe d’alma só metade;
E o coração?... deixei-o num abraço.

IV
Certo estou de que a planta, já crescida,
Terá brotado flor. Se ao menos dado
Me fosse colher uma... ver a terra
Pelo pranto dos meus santificada!
Se uma dessas saudades enfeitar-me
Viesse a minha essa, ou meu sudário,
Ou, pela mão materna transplantada,
Encravar-me as raízes no sepulcro...
É tão pouco, meu Deus!!... Eu não vos peço
Soberbo mausoléu, estátua augusta
De túmulo de rei. Assaz desprezo
Esses gigantes de oiro
Com entranhas de pó. Mortalha escassa
De grosseiro burel, que bordem lágrimas;
Terra só quanto baste p’ra um cadáver,
E as minhas saudades, e entre elas
Uma cruz com os braços bem abertos,
Que peça a todos preces. Terra, terra
Perto dos meus e no torrão da pátria,
É só quanto suplico.

V
A morte é dura,
Porém longe da pátria é dupla a morte.
Desgraçado do mísero, que expira
Longe dos seus, que molha a língua, seca
Pelo fogo da febre, em caldo estranho;
Que vigílias de amor não tem consigo,
Nem palavras amigas que lhe adocem
O tédio dos remédios, nem um seio,
Um seio palpitante de cuidados
Onde descanse a lânguida cabeça!

Feliz, feliz aquele, a quem não cercam
Nesse momento acerbo indiferentes
Olhos sem pranto; que na mão gelada
Sente a macia destra d’amizade
Num aperto de dor prender-lhe a vida!

Feliz o que no arfar da ânsia extrema
De desvelada irmã piedoso lenço,
Úmido de saudades vem limpar-lhe
As frias bagas dos finais suores!

Feliz o que repete a extrema prece,
Ensinada por ela, e beijar pode
O lenho do Senhor nas mãos maternas!

Desgraçado de mim!... Talvez bem cedo
Longe de mãe, de irmãos, longe da pátria
Tenha de me finar... Ramo perdido
Do tronco que o gerou, e arremessado
Por mão de Gênio mau à plaga alheia,
Mirrarei esquecido! Os céus o querem,
Os Céus são imutáveis: aos decretos
Do Senhor curvarei a fronte humilde,
Como cristão que sou. Eternidade,
Recebe-me a teu bordo!... Adeus, ó mundo!

VI
Já sinto da geada dos sepulcros
O pavoroso frio enregelar-me...
A campa vejo aberta, e lá do fundo
Um esqueleto em pé vejo a acenar-me...
Entremos. Deve haver nestes lugares
Mudança grave na mundana sorte;
Quem sempre a morte achou no lar da vida
Deve a vida encontrar no lar da morte.

Vamos. Adeus, ó mãe, irmãos, e amigos!
Adeus, terra, adeus, mares, adeus, céus!...
Adeus, que vou viagem de finados...
Adeus... adeus... adeus!

Adeus, ó sol que, amigo iluminaste
Meu pobre berço com os raios teus...
Ilumina-me agora a sepultura: —
Adeus, meu sol, adeus!
Florezinhas, que quando era menino
Tanto servistes aos brinquedos meus,
Vegetai, vegetai-me sobre a campa: —
Adeus, flores, adeus!

Vós, cujo canto tanto me encantava,
Da madrugada alígeros orfeus,
Uma nênia cantai-me ao pôr da tarde:
Passarinhos, adeus!

Vamos. Adeus ó mãe, irmãos, e amigos!
Adeus, terra, adeus, mares, adeus, céus!...
Adeus: que vou viagem de finados!...
Adeus!... adeus!... adeus!